A mãe levou uns bons quinze dias a aceitar que ele se tinha ido embora. Quando o fez, naufragou no sofá de pele e chorou um dia inteiro, vindo à superfície apenas para poisar os olhos na acne da parede, filigrana de areia e geografia de bolor onde eu sabia que ela o divisava, em jeito de projecção unipessoal caseira, contentinha na pobreza de interromper a realidade com as coisas que os olhos põem nas coisas que os olhos querem ver. Eu não lhe podia dizer o quanto estava contente por ele ter saído das nossas vidas. Em primeiro lugar, porque não sabia se era definitivo ou se o sujeito, afoito no arrependimento de pacotilha
nunca mais e prometo eram apelidos adoptivos
não nos apareceria novamente em casa com uma naturalidade desarmante, esbodegando-se em frente ao noticiário num abandono de morsa e reclamando a pontualidade do jantar, o dinheiro que só eu meto em casa, esta balbúrdia de coisas espalhadas no quarto mais a fedelha intrometida, que não me soubeste dar um filho, e eu fixava -me nos olhos dele até lhe perturbar em definitivo o equilíbrio entre não se levantar e aplicar-me um correctivo e quando me assentava uma galheta na cara eu saía do transe um grande buldogue inglês aspergindo a sala de baba e visco, poltergeist eunuco em camisa de flanela e rumava ao quarto, metia -me na cama e jurava a Santa Teresinha que um dia o havia de ver morto ou, hipérbole de criança, ainda pior.
— Valério Romão, “Cair Para Dentro“, Abysmo, Fevereiro de 2018
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Cair para dentro
Valério Romão
CAIR PARA DENTRO narra a história de duas mulheres, Virgínia e Eugénia, unidas pela relação mãe-filha. Eugénia, a filha, não foi educada para ser um adulto independente e, embora seja professora universitária, a mãe controla o seu dinheiro, o seu tempo, proibindo-a até de ter telemóvel. Quando Virgínia começa a desenvolver sintomas de demência, Eugénia vê-se obrigada, deixando aquela infância artificial construída pela sua mãe, a crescer e a cuidar de todos os aspectos práticos da vida de ambas. Até descobrir que, no estado em que a mãe se encontra, a vingança é uma possibilidade. CAIR PARA DENTRO, volume que fecha a trilogia «Paternidades Falhadas», explora até ao limite as dificuldades das relações humanas e os dilemas morais que delas decorrem.
Edição #68
Lisboa, Fevereiro 2018
Ilustrações e logótipo convidado Alex Gozblau
Revisão Raul Henriques
Composto em caracteres Sabon sobre Coral Book Ivory 100 g.
Caderno das ilustrações em Couché mate 150 g.
Capa em Cartolina chromocard 260 g.
13 x 18 cm
212 páginas
ISBN 978-989-8688-62-0