Apesar da «nobre indiferença muçulmana pelo autoclismo, o esgoto, a árvore frondosa e a ânsia de ar das ruas novas» de que falava Aquilino, dando razão a Boris, e da falta de pergaminhos que já em 1758 era notada pelo prior Sebastião de Sousa, Olhão mantém um lastro de glória. Industriais, pescadores e vates contrabandistas continuam a partilhar o desrespeito pela lei e o culto pelo Senhor dos Aflitos, numa vila pródiga em dândis e espanholas, estrangeiros e aventureiros, sardinhas e anarquistas, operários e fedor. Tresanda, resume Raul Brandão. Não exagera o simbolista. Ao peixe que apodrece sob o calor africano junta-se a matéria fecal que escorre a céu aberto, húmus pestilento que Captain Zorra nunca conseguiu olvidar, memória primeva que nos conduz, um pouco abruptamente, é certo, a Marilyn Monroe, actriz que nunca veio a Olhão.
— Ana Cristina Leonardo, O Centro do Mundo, Lisboa, Quetzal, Junho de 2018, p. 27.
Por decisão da Autora, este livro mantém a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.